segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Cenário molhado




Os pingos de chuva molham o asfalto
Onde deslizam os carros enxutos e molhados
Eles espirram furiosos para todos os lados
Ressacas poluentes e insistentes náufragos

Leva ao delírio os lábios apressados
Essa chuva que insiste em cair serena
Determinando o ranger de dentes ansiosos
Estradas inundadas, olhares claustrofóbicos

Perdendo o ritmo olhando nuvens cinzas
Escravizado em poças e em grandes saltos hipnóticos
A orla fluvial vira um caos furado
Depois do noticiário mostrar todos os estragos

Eu só olhei pela janela o líquido caindo 
Não desejei romper o ciclo natural da água
A respirei em sua forma gasosa
Toquei o orvalho no despetalar das praças


Tamires de Lima

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Placebo dos amantes





Pra que diabos eu iria querer falar de amor?
Percebo que a vida levada sem pensar em casa
Mesa, cama, botão, agulha e novelo
É tão mais invejada pelos amantes envelhecidos
Que dias e dias de abraços insossos e inodoros

Uma caldeirão gigante de corações ferventes
E uma velha senhora de sorriso bondoso e interesseiro
A cada tic tac do tempo ela diminui as tochas da lareira 
E entope-se de um vinho barato e chulo
Corroendo os ossos do jantar aceso 

E assim entorpecida cria novas poções mágicas
Lembrando-se de tempos aos quais rendia o floreio
Em cada recipiente enfileirado e de tamanho próprio
Rotula, nomeia, infere tons e códigos
Receitas para amor, paixão, desilusão e receio

Se eu fosse essa senhora deixaria o mundo sozinho 
Jogaria os recipientes em um lugar deserto
Veria cada corpo humano colocando para fora os sentidos
Cada cidadão deixando de ser menos  um inseto
Tudo isso pela desintoxicação de um forte placebo 

Tamires de Lima

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Au revoir menina!


Menina já não dorme
A caixinha de música tocou calmamente
Uma melodia de Bach quebrada
Au revoir Shoshanna
Sou eu de olhos já abertos
No colchão cheirando à vitória
Queimando a lâmpada da luminária
E recriando sombras expressionistas
No impressionismo francês
Da minha decoração de frases aleatórias
O juvenil me invadiu e abocanhou
Cada pequeno pedaço envelhecido
Do meu templo que entrava e saía formigas
Acredite, velho de terno azul 
Antes mesmo de eu despertar
Essa derme do meu olho já não dormia
Pois uma felicidade inteira e absoluta me invadia
E eu gosto menino, eu gosto
De saltar como ovelhas de lã macia
Eu gosto de possuir coisas novas e fechadas
É um deleite quando provo esse cálice
De alegria

Tamires de Lima

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Brincando com fogo



Ontem o pai queimou a Maria Clara
Com os fogos que comprou para nós
Eram umas borboletas brilhantes
Que pintaram o céu com cores de todos os tipos
A Maria nem ligou para a queimadura
Ficou tão feliz brincando com o fogo
Que esqueceu que havia machucado a perna


Tamires de Lima

domingo, 11 de agosto de 2013

Um dia não tão normal


                                         





No banho frio o cabelo estava sendo lavado com condicionador e reidratado com shampoo. Só percebi a troca quando li os rótulos. Não importava, o jasmim perfumado já havia se espalhado em movimentos rápidos pelo meu corpo que se encontrava em chamas, mesmo com o toque dos meus próprios dedos. Cantarolei um pouco de Draconian enquanto me enxugava com uma toalha bordada em letras azuis. 

Liguei a Tv e no noticiário passava comerciais e reportagens ridículas sobre os presentes que os filhos cheios da grana iriam comprar para os seus pais. Eu pouco estava me importando com o capitalismo incinerando as datas festivas, ou muito menos com os lábios deliciosos daquela repórter gostosa que agora falava o lead de uma outra notícia, e com uma voz extremamente sexy. Se ela fosse ao menos uma profissional das forças armadas até poderia pegá-la à noite para dançar um tango em meu apartamento de quinta. 

Mudei o canal, a programação estava até mais interessante com o ritmo de festa daquele velho filho da puta do Sílvio Santos. Eu ia com a cara dele e se já fosse nascida na década de 80, e ele tivesse levado em frente o lance da presidência, teria com certeza clicado nas teclas do um e do seis. Quem sabe ele não distribuiria bolsas Jequiti para todo mundo andar cheiroso e com a pele macia. 

Estou contando tudo isso só para esquecer que estou na véspera do meu assassinato. Já sonhei duas vezes com o meu colega de classe me matando e embora sabendo que isso pode parecer uma idiotice, acredito na força das fantasias da mente humana. Quando daqui a alguns dias lerem no jornal que o meu corpo fora esfaqueado, lembrem-se ao menos de doar os meus órgãos, de entregarem a graviola que deixei em meu testamento para o meu melhor amigo, e de preservarem na memória o sonho que eu tinha de transformar o mundo, com a minha guitarra e com a minha voz rouca. 


Tamires de Lima

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Dalí, me devore!







René Magritte que me perdoe
Mas eu prefiro ser devorado por Dalí
Aqui e acolá

Os vestígios de tinta pungente
São mais fortes que firulas inocentes

Oh meu muso de grandes bigodes
Venha cá meu faceiro Dalí
Mas cuidado com as pedras de Drummond
Que sacodem a mente de Freud

Se enlouqueci feito o poetinha
Precisando de matrimônios em nove 
Condolências aos outros artistas
Só Salvador dissipado me move


Tamires de Lima






quarta-feira, 17 de julho de 2013

Foda é fumar o cigarro daquele velho



Foda é você conseguir
Mascar o fumo
Do cigarro
Daquele velho
Da última cela
Aquele que todas
Todas as noites
Surge com surtos
Surge como o céu
Imenso e profundo
Sim, aquele cara
Que matou a esposa
E comeu o seu fígado
E ainda há resquícios
Do sangue
Em seus dentes estragados
Ele sorri como se
Estivesse possuído
Por todos os espíritos
Que vagam o mundo
Almas sombrias
Que arrastam
Que arrasam
Que enfileiram
Os humanos
E os transformam
Em marionetes
Dos seus desejos
Ininterruptos
Vazão de repúdios
Prelúdios estilhaçantes.

Tamires de Lima

Mazelas Humanas




Eu não faço parte
Da seleção natural
Muito menos
Da linearidade
Do mundo
Eu sou algo gritante
Sou aquela mariposa
Não camuflada
Mas que também
Não foi extinta
Não me encaixo
Em quadrados
Círculos ou retângulos
Sou o esperma
Dos antigos
Homens das cavernas
Neanderthália
Também pode ser
O meu nome
Prove das minhas vísceras
Você verá que
Sou os caprichos
Daqueles que
Comiam e bravejavam
Em montanhas azuis
Ou melhor
Beba vinho
No meu crânio vazio
Beberá o sabor
Das mazelas humanas.

Tamires de Lima

Partitura Muda




Hoje eu o li por completo
Devorei cada pedacinho
Das tuas palavras sujas...
Escarnecidas, encandecidas
Pequenos versos em partitura muda

Te levei com minhas vestes a passear
Refletindo o brilho
Dos teus sons amargos...
Corri no vento
Debrucei no espaço
Como um sol sonoro
Ascendente e frágil

Brincando em rimas
Te descobri sereno
O vi tão belo
Impenetrável e cândido
Navegando profundo em teus sonhos
Penetrei no íntimo do teu âmago

Deslizei, portanto
Modernidade líquida
Palavras aturdidas
Verdades malditas
Teu olhos meigos em minha avenida
Minha pequena alma ganhou teu encanto

Tamires de Lima

Anacronismo Cinzento



O som da sonata triste
Agora invade minha alma
Sinto que parei no tempo
Fiquei trancafiada em 1912
Naquela casa abandonada
Que você hoje passa
E só encontra as ruínas
O cheiro do seu suor
O sabor da sua boca
O toque suave das suas mãos
São acordes que são tocados
Em todas as noites
Que permaneço solitária
Nesse anacronismo cinzento.

Tamires de Lima

Eu sou um lixo



Eu sei que eu sou
Um lixo orgânico
Um vício ambulante
Um lixo mecânico
Cervejas constantes
Entorpecentes na veia
Morfina e agulha
Em dor passageira
Rasgando a pele
Causando estrago
No fim, no cansaço
Não tenho caminho
Um velho sem ninho
Um fim feio e trágico.

Tamires de Lima

domingo, 7 de julho de 2013

Cadáver da rua 34





Eu quis aquele cadáver da rua 34
Ele cheirava à rosas matinais
Sua pele gélida tinha um ar acolhedor
Eu o quis...
Eu o quis porque ele sorria
Com um ar angelical
Eu quis deitar sob o peito
Daquele cadáver da rua 34
Ele me chamava
Mesmo com os olhos 
Levemente fechados
E sabe, ele também me queria.


Tamires de Lima

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Conhecendo um artista


Texto e foto: Tamires de Lima







Vinte e seis de abril de 2013. Era um dia de sol forte na tarde em que os estudantes do curso de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) foram visitar um Centro Cultural na cidade de Juazeiro do Norte, e lá estava eu diante de várias estátuas do rei do baião, de Padre Cícero e de santos de todos os tipos. Ponto de Cultura Mestre Noza era o nome grafado em letras pretas que estava na camisa de um artista do lugar.  

O colorido dava forma às peças, e ao mesmo tempo as cores quentes deixavam o lugar mais acolhedor. Muitas coisas interessantes havia no local, desde cordéis com nomes inusitados até peças com detalhes de dar inveja à Da Vinci. Mas não foi nada disso que fez os meus olhos brilharem como os olhos da Derpina ao ver o Derpe, e sim um senhorzinho de pele escura e traços fortes.

Ele poderia ser João, Manoel ou Joaquim... Não importa. O que realmente interessa é que a sua luz me chamou atenção, mesmo estando no fundo daquele lugar amontoado de imagens e esculturas. Comecei a conversar com ele. Puxei papo, pois já havia terminado a minha entrevista para o meu trabalho. Ele me deu seu nome de batismo e seu nome artístico. Já havia mais de vinte anos que trabalhava no local e me confidenciou que o seu grande sonho era poder ter uma prateleira só sua, onde ele pudesse colocar suas peças. Queria ter um lugarzinho só seu. Seria o seu céu onde guardaria suas artes sacras, inclusive o seu anjo de apenas uma asa.

Um artista embebido de sonhos e de álcool. O cheiro forte exalava durante os instantes em que conversamos. Acho que esse deve ter sido o motivo de ter ido com a minha cara... Contou-me que uma amiga aos doze anos de idade o influenciou a começar a produzir as peças em madeira, e o que começou como brincadeira tornou a profissão daquele homem que perdeu pai e mãe muito cedo e que viveu na rua durante vários anos. Não posso negar que me emocionei com o relato. Os olhos do homem rígido, de mãos fortes e cheias de calos, foram responsáveis pela criação de uma lágrima que desceu ao seu rosto como as águas de uma cachoeira cristalina.

Preferiu enxugá-las saindo do local. Sentiu-se envergonhado e pediu desculpas pelo ato. Ele nem imagina que esta foi a ação mais nobre e pura que vi em toda a minha visita... Eu o acompanhei e chegando próximo às suas esculturas ele me contou que não conseguia parar enquanto não terminava uma peça.
Chegou a hora de ir embora e fiquei com o coração apertado de deixar o João, Manoel Joaquim sozinho. Havia sido uma boa companhia. Eu o desejei sorte em seus sonhos e agradeci por ter sido gentil. Ele pediu para que eu voltasse e desejou que eu tivesse êxito em minha profissão...


É uma pena que não perguntei se ele tinha conta no facebook para podermos conversar mais e mais virtualmente... Meu novo amigo artista ficou apenas nos registros das minhas fotografias e da minha memória.



quarta-feira, 1 de maio de 2013

Pousa Maria, mariposa!










Às vezes eu sinto um vendaval de figuras se enrolando em meu estômago. Elas correm, rodopiam e sobem escadas de alto a baixo. Sinto meus vasos sanguíneos como trilhas, carregando a fluidez de ácidos. Brincando e caminhando com meu alvéolo pulmonar.

Às vezes sinto uma pessoinha que desliza pelos meus tímpanos. E que ao sorrir para o alvéolo voa devagar. Oh, Maria deformada, mariposa pendendo em claves de fá. Pousa linda Maria, mariposa nesse cerúleo estelar.

Engraçado é vê-la sob minhas artérias e cheirando ao ócio da ferrugem como elas... A pequena Maria desafiando os dragões. Gritando e se esvaindo no meu eterno pulsar.



Tamires de Lima

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Poema para minha vó






E mesmo quando todo o teu sangue secar
E eu não puder mais sentir tuas veias
E mesmo que tuas entranhas desapareçam
Eu permanecerei te amando ao luar

E mesmo que eu não sinta
O calor do teu corpo em abraços
Mesmo que vire pó
Tuas mãos, tuas pernas, teus braços
O meu amor por você não cessará

E mesmo que não restem mais trajes
Que a luz da sua vida tenha se apagado
Mesmo que tenham levado
O teu templo, inerte, tão frágil...
Eternamente ainda irei te admirar

E mesmo que tudo em você desfaleça
Que como as geleiras do Norte
O seu corpo em um jazigo permaneça
Eu ainda estarei daqui a te olhar

E mesmo que só restem os perfumes
Onde você costumava descansar
E ainda que seja comum tua ausência
E que nas noites de inverno
Não venhas mais me abraçar
Em meus sonhos querida
Você nunca morrerá

Tamires de Lima



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Um tom de amor





Hoje eu preciso de estrelas
Para iluminar o meu céu
Que já não brilha...
Se você pudesse tocar as pétalas
Daquela rosada flor
Se eu pudesse tocar o orvalho
Que essa fria manhã de inverno
Nos impõe...
Tudo seria mais concreto
Mas isso não quer dizer
Que não simpatizo com o abstrato
Fito os lírios, as cachoeiras
Os rios que passam
Os barcos que tombam
Os navios que chegam
A imensidão tão larga
Que me abraça
E me aperta o peito...
Fito teus olhos
Tão doces
Que sorriem para mim
Desmancho-me como areia da praia
Você me faz flutuar
Meu corpo sucumbe
Sou uma estátua grega 
Olhando a sua imagem
Em meu espelho
Somos um só
Somos seres distintos
Em apenas um reflexo
Você a orquestra
Eu o corpo de baile
E juntos somos intensos
Juntos percorremos
Todo azul cerúleo
Da paleta de cores
Mas aí a chuva vem
E faz um novo tom aparecer
De sol para dó
Me reviro, me espalho
O pincéis pintam borrões
Sou Dalí no âmago do seu fim.

Tamires de Lima